O que 'O Agente Secreto' e 'Ainda Estou Aqui' têm em comum? 4w3x50
Dois filmes brasileiros sobre ditadura são premiados no mesmo ano; reconhecimento para obras pode refletir preocupação mundial com a democracia 2p4d5i
Dois filmes brasileiros recentes, ambos com premiações internacionais inéditas. Ainda Estou Aqui ganhou o troféu de roteiro no Festival de Veneza e coroou sua carreira de prêmios com o Oscar de melhor filme internacional, além do Globo de Ouro para a atriz Fernanda Torres. O Agente Secreto acaba de vencer os prêmios de melhor ator (Wagner Moura) e melhor diretor (Kléber Mendonça Filho) no Festival de Cannes, o mais importante do mundo. O que têm em comum? Ambos são ambientados durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). 74o33
Não parece casual. Méritos artísticos à parte, essas premiações parecem refletir um momento de preocupação mundial com a democracia. É natural que isso aconteça.
Em tempo de guerras e catástrofes aparecem muitos filmes sobre esses temas - haja vista a quantidade de documentários contemporâneos ambientados na Ucrânia ou em Gaza.
No momento em que teses autoritárias têm avançado no mercado das ideias, parece natural que o cinema cumpra sua missão de ajudar na reflexão do mundo e alertar para os desvios das aventuras antidemocráticas.
Na América do Sul temos até tradição com esse tipo de obras cinematográficas - que acompanham outra tradição, essa bem triste, de interrupções violentas do processo democrático no subcontinente. Exemplos são as cinematografias dos nossos vizinhos, como é a Argentina, com filmes como A História Oficial (ganhador do Oscar) e o arqui-premiado Argentina 1985, sobre o julgamento e punição dos crimes da ditadura.
O Chile é outro caso notável, com obras e mais obras sobre o golpe contra Salvador Allende em 1973 e a sanguinária ditadura de Augusto Pinochet. Batalha do Chile, tríptico de Patricio Guzmán, se tornou um clássico sobre o tema. Guzmán fez ainda outra trilogia reflexiva sobre o período ditatorial e seus crimes com A Nostalgia da Luz, Botão de Pérola e A Cordilheira dos Sonhos.
O próprio Brasil não se omitiu em refletir, cinematograficamente, sobre a fragilidade da nossa democracia. Mesmo nos primeiros anos de ditadura já o fazia, com filmes como O Desafio, de Paulo César Saraceni (1965) e Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, até obras recentes como são as de Walter Salles e de Kléber Mendonça.
O que muda, talvez, em termos de reconhecimento internacional, seja o atual estado do mundo. Antes, os países desenvolvidos nos quais acontecem os principais festivais do mundo, viam esses ataques à democracia como algo longínquo, próprio de países em desenvolvimento ou imaturos.
Hoje, o avanço da extrema-direita os ameaça em casa. Países como Hungria, Itália e França veem as ideias extremistas crescer, ou mesmo vencer e se impor nas urnas. O golpe definitivo parece ser a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos para um segundo mandato, cujas consequências ainda estão em aberto.
Sentindo a ameaça na própria pele, esses países parecem se sensibilizar para obras que tratem da temática. E, sobretudo, que sejam alertas sobre as consequências dos desvios ditatoriais.
Os nossos filmes, em especial estes que têm sido premiados, entram como contribuição a esse debate internacional sobre a democracia e as ameaças que sofre. Infelizmente temos muita experiência desse tipo de situação e podemos transmiti-la aos países desenvolvidos e que antes sentiam-se imunes a esses perigos.
